terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A cena...


       Bolsa largada sobre o sofá... Echarpe deixada no corrimão da escada que leva aos quartos... No corredor, o par de sandálias deixadas paralelamente ao tapete de camurça... A porta do quarto, deixada aberta, permitia-me ver a cena triste que ali dentro havia...
       Os cabelos, antes perfeitamente arrumados e escovados, estavam agora despenteados e presos por um elástico desleixadamente colocado, num momento de extrema intensidade emocional... Os pés já estavam descalços...  A maquiagem, antes tão precisa e caprichada, estava agora desfeita pelas lágrimas incessantes... O vestido fino, delicadamente bordado por mãos talentosas, agora estava amassado e molhado pelas lágrimas que não morreram na boca, antes desenhada pelo batom mais caro do último lançamento... As jóias ainda lhe enfeitavam o corpo, fazendo seu rosto, avermelhado e manchado, parecer mais carente, tornando seu colo, em movimento, aos soluços, um pouco mais corado, a pulseira e o anel, colaboravam para que a cena vista se tornasse ainda mais digna de compaixão... Ela era culta, bonita, doce, meiga, e esbanjava delicadeza, mesmo em meio as lágrimas...
       A chave estava jogada sobre a mesa de estudos, colocada com muita cautela ao pé da cama. As flores ainda estavam na água, elas eram a única beleza viva daquele cômodo, que não estava a afogar-se em lágrimas. Os retratos, bem distribuídos pela mesa, tornavam o lugar ainda mais aconchegante e convidativo à apreciação...
       Sentada em uma poltrona que ficava ao lado da cama, estava a protagonista da cena mais triste. Ela não se movia, estava inerte, como se tivesse sido colocada ali em um momento de profunda exaustão, por alguém que a amava o suficiente para dar a vida em nome de sua felicidade, só para poder vê-la sorrir.
       Abraçada junto a almofada, adormecera ela... Ali estava quem acabara de perder um pedaço grande de sua vida... O silêncio que reinava sobre a casa era tão absoluto, quem nem o vento se ousou a mover as cortinas de seda que ali estavam... Era como se o universo todo tivesse parado, num ato digno de admiração, em respeito ao sufocante sentimento que dominava aquele lugar...
       Aprisionada em um corpo exausto e desiludido, estava uma alma viva e um espírito forte. Dentro daquele corpo, alguém cheio de sentimentos e vontades, gritava por socorro... Aquele rosto manso e de uma delicadeza ímpar, carregava um sentimento maior que o mundo, e trazia consigo os melhores sentimentos já experimentados pela humanidade... O que eu podia ver, era a embalagem daquela alma...


       Neste momento, a visão me foi ofuscada... Eu não mais podia ver com clareza o quarto, nem a doce criatura que ali estava, envolta em lágrimas. Então eu olhei para casa, e dela podia ver seu telhado, que também ia se afastando, lentamente, até que eu pudesse ver todo o bairro, onde estava aquela casa, com aquele quarto... Em pouco tempo pude ver toda a cidade, não era tão grande, mas me fizera saber de algo  inesquecível. A cena que me cortara o coração era minha. Aquela 'doce criatura', era eu. E como ela, naquela mesma noite, se encontravam outras tantas pessoas em situações semelhantes, piores, e algumas até menos intensas, mas que para aqueles que sentiam, era igualmente dilacerador...
       Entendi, naquele momento, que das dores e sofrimentos da vida, nem eu, nem ninguém que esteja usufruindo do privilégio de estar vivo, estará livre. Entendi, que cenas como essa sempre existirão, em todo lugar, com todo o tipo de indivíduo...
       Embasbacada, mediante tal cena, eu concluí que a vida era feita de pedaços, desde os insuportavelmente tristes e dolorosos, até aqueles em que falta-nos o fôlego de tanta felicidade e euforia. Entendi que esses pedaços são como peças de um quebra cabeça, de tal modo que não podemos deixar nenhum deles de fora, é indispensável sentir a dor que esmiúça o coração, da mesma maneira que é indispensável sentir o peito estufado de prazer e satisfação...

"A dor é um presente, que nos foi dado com o intuito de fazer-nos fortes e gratos. Se não existissem os momentos difíceis,
qual seria o valor dos agradáveis?"


Susan Oliveira

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