quinta-feira, 10 de julho de 2014

Sobre dias perfeitos

         As gotas batiam contra o vidro frio da janela, formando uma melodia ímpar que se tornava música ao se juntar com o som das gotas, que violentamente se jogavam sobre o telhado, e ao daquelas que molhavam sem pudor a folhagem densa das árvores do jardim. O frio que dominava o exterior era intenso. Ali não haviam pássaros, não haviam pessoas, não havia nenhum som de vida além do barulho das águas que cobriam todo cenário, ofuscando a vista ao longe, e tornando tudo contrastado pelo dom irrefutável que a chuva tem, de tornar tudo mais bonito.


         O início daquela manhã era digno de ser comparado à noite, pois tal como nela, o sol não reinava absoluto no céu, antes, apenas alumiava a cena, acanhadamente, como o faz através da lua nas noites mais densas. As nuvens, pesadas e escuras, pareciam disputar lugar no céu, não havia nem sequer um espaço entre elas, preenchiam toda a extensão que lhes era permitido pela física, cedendo espaço apenas para as altas montanhas que se punham, exuberantemente, ao redor do cenário. Um ar de mistério e suspense, pairava sobre a cidade...
         O despertador toca. Aqueles olhos castanhos, que traziam atrás de si quase o mesmo mistério que jazia lá fora, se abrem. As mãos buscam o botão que anuncia o dever cumprido daquele que sutilmente (ou não), nos acorda sempre que necessário. Os braços lançam para os pés o edredom que cobria todo o corpo, e em uma questão de segundos, como num reflexo de defesa, apanha-o de volta, cobrindo com destreza o corpo recém descoberto; era o ar do quarto, que embora aquecido, estava frio. Ela cobriu sua cabeça, como uma tentativa de preparo, ou busca de coragem, virou-se para o lado da porta, tirou os pés da cama, colocando-os sobre as pantufas de pelúcia marrom que estavam ao lado, e ainda envolta no edredom, sorriu. Em sua mente havia a certeza de que aquele, era um daqueles dias... Perfeitos.


         Após o ritual humano de praxe, ela se assenta à mesa, calçando as botas pretas de couro enrugado, que estiveram esperando por ela durante todas as estações que precedem o digno inverno, um sobretudo rajado em cinza e grafite, e um cachecol com tons em degradê que terminavam num petróleo intenso e elegante. Era hora do café, o dia lá fora já começava expulsar com sutileza a escuridão causada pelas nuvens, quase pretas, que cobriam o céu.
         Em pouco tempo a escuridão do exterior se esvaiu, dando lugar à penumbra. Ah, sim... Aquela penumbra que torna os dias cinzentos, um pouco descoloridos, como que se tingisse a cidade de tons pastel, que se tornam um pouco mais intensos por terem sido banhados pela chuva, que embora neste momento já houvesse cessado, deixara seu rastro de umidade em cada canto desprotegido. Então, ela abre a porta grande, de madeira marfim, com o guarda chuva nas mãos, se dirige ao portão de ferro que dá acesso à rua, e sai... Desnecessário descrever o que havia naquela mente, entretanto, vou instigar seu intelecto, caro leitor, à imaginar o que a ocupava.
         Os lábios dela, bem vermelhos pela baixa temperatura, embora um pouco desajeitados pelo frio cortante que lhes tocava, sorriam. Os olhos, no meio daquela neblina que tornava a visão um pouco dificultada, brilhavam. Seus passos doces, e embora meigos, também firmes, caminhavam como que dançando, na direção que ela os dirigia. Suas mãos cobertas pela luva preta de camurça, seguravam o guarda-chuva firmemente, e o ar aquecido que lhe saía dos pulmões na expiração, gerando aquela aparência de fumaça a nos sair da boca, a deixavam sobremodo empolgada. Bem, deixarei-lhe ainda, caro leitor, a dica final, para completar a façanha que sua imaginação é capaz de realizar... Ela amava o inverno, bem mais que as outras estações.


         Do dia que se seguiu àquela manhã, não relatarei nada. Manterei intacta a privacidade daquela figura, dona do olhar misterioso, que ao sair de casa deixou apenas o rastro de seu perfume amadeirado, que já se misturava ao aroma de 'mundo molhado' que inundava a cidade, e a certeza de sua presença, pelo som do salto da bota que a calçava, que gradativamente ia se distanciando, até que seu som não podia mais ser ouvido, e pelo espectro dela, que já se dissolvia na neblina distante. Deste instante em diante, cabe à cada um que lê, imaginar o desfecho do dia.


Susan Oliveira.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Aquele dia

          Era o fim da tarde de uma quarta-feira, dia comum. Não havia na agenda nada de especial marcado, eu não possuía em minha mente planos animadores, nem tão pouco a pretensão de fazer qualquer coisa que fosse julgar como divertido ou entusiasmante.
          O dia estava cinzento, era o típico dia em que meu interior se inclina à sentir aquela sensação característica de... Bem, deixemos-a em secreto. Já tenho há muito, entranhado em meu ser, bem lá dentro, uma irremediável queda por entardeceres, mas apenas, e digo ainda com letras destacadas, unicamente, os que posso observar sozinha, de uma janela ou varanda qualquer, sem que a correria do dia me atinja - sim, porque os entardeceres que presencio da janela de uma condução pública, sobre trilhos ou rodas, ou mesmo de um local cheio de humanos a andar com pressa aos seus destinos, estes em muito, me desagradam - e naquele dia, no meio da turbulenta semana de final de período, eu pude ter novamente a graça de me encontrar no cenário perfeito para tal.


          Estava eu, mais uma vez, porém de forma singular, diante daquela janela... O cheiro do exterior já me era familiar, havia chovido nos últimos três dias, ininterruptamente, fazendo com que a fragrância dos troncos e folhas molhadas, que em muito me agradam, ficasse já entranhada em minhas narinas, entretanto isso não impediu que o abrir da janela, embaçada pela diferença de temperatura existente entre o lado de dentro e o de fora, trouxesse a melhor sensação que pode haver, em dias como aquele. A brisa gelada entrando, o cheiro invadindo o interior da casa, e o ruído da chuva, tão doce e melódico aos ouvidos, antes impedido de adentrar pela vedação da janela, soando como música em meus ouvidos...


          Eu contemplava ao olhar para fora, todo o tom cinzento, e as cores da natureza mais contrastadas, pelo tom escurecido que o estar molhado traz às coisas, lentamente, como que em mágica, se transformarem em um quadro pintado em sépia. Os raios do sol, ocultados à dias pelas densas nuvens carregadas que cobriam toda extensão do céu, pareciam lutar contra a parede cinza que os ofuscava, trazendo aquela iluminação discretamente alaranjada, que só os entardeceres conseguem criar. Detive-me a observar o cenário que me contemplava, pelos minutos que me foram concedidos, antes que o sol fosse sutilmente se escondendo atrás da montanha distante, que havia à frente. Tão logo se retiraram os raios de luz, o cenário se transformou novamente em um mar cinzento, que gradativamente ia se escurecendo, até que não mais podia ver as montanhas distantes... Anoiteceu.


          Retirei meu olhar daquela janela, e respirei, com uma profundidade incomum, como para auxiliar os sentimentos que pairavam sobre mim, a se assentarem no interior, já que cada um deles, individualmente, eram bem vindos. Voltei-me para os papéis sobre a mesa, grata pelo concedimento à mim entregue, de vivenciar o que de mais simples há, mas que carrega aderido à sua simplicidade, a capacidade incrível, de trazer-me tais sentimentos. Naquele momento eu sorri, juntei os papéis sobre a mesa, tomei em minhas mãos o lápis, e pus-me a escrever... O que naqueles papéis ficaram gravados à próprio punho, é oculto, ninguém conhece além de mim...

Porque determinadas coisas, mantenho apenas comigo, onde é seguro e tranquilo,
não porque se trate de um segredo mortal, mas puramente porque o que há dentro de mim,
não cabe dentro de mais ninguém... É só meu!

-Susan Oliveira'

segunda-feira, 3 de março de 2014

Um 'ele' na multidão

        Aquela mania de fazer perguntas, que à determinados tipos de temperamento, simplesmente não têm resposta. Aquele ar de serenidade, que remete à uma vida perfeita, daquelas que não há possibilidade de encontrar algo complicado ou desagradável. Aquele tom de voz que não se altera, tornando as conversas por telefone, em meio à turbulência do dia, impossíveis. Aquela estranha vontade de fazer-me feliz, que à mim não é muito fácil de compreender de onde vem e porque permanece, mas as pessoas dotadas de emoção afirmam que vem daquele sentimento antigo, assustador e um tanto sem sentido, que a humanidade nomeou de  'amor' e os traços culturais antigos especificam como 'eros'. Aquela intrigante tenacidade em determinadas coisas, como tentar arrancar sorrisos de quem está à quilômetros de distância...
         Ele era romântico, daquele tipo que transmite essa característica no andar, no falar, e até mesmo no vestir... Sim, aquelas figuras que a gente pensa que não existe mais, mas que vez ou outra encontramos por aí.
        Ele era perseverante e persistente. Aquele tipo de pessoa que costuma nos vencer pelo cansaço. O tipo convicto, que embora beirasse sempre à insegurança, permanecia ali, apresentando suas propostas e garantindo a certeza do sucesso.
        Ele era paciente, capaz de passar por minhas crises existenciais sorrindo, embora eu não conheça como esteve seu interior nestes momentos, ele permanecia ali, no mesmo lugar, como se nada houvesse ocorrido. Possuía uma habilidade de viver focado em algo miraculoso sem mudar de ideia, ou ao menos sabia bem como disfarçar os momentos de oscilação de pensamentos.
        Ele era atencioso, tanto que chegava a causar certa pressão sobre minha vida, mas isso não era ruim. Era o modo que ele encontrara de tentar cuidar à distância, o que é admirável, pois ao meu olhar racional isso é impossível (isso me lembra outra característica dele: a mania de querer fazer coisas impossíveis).
        Ele conseguia fazer o que quase ninguém na Terra é capaz de fazer: alterar meu humor. Tinha a capacidade de me deixar sem graça, nervosa, e por vezes, apavorada, de me fazer sorrir, e também chorar, e acredite, todos esses sentimentos causados, no final, eram bons. Me fazia inclinar os neurônios à analisarem coisas que dantes nem sequer passavam por minha mente.
        Ele propunha a mais absurda de todas as coisas. Passava os dias a tentar convencer-me de que coisas como deixar de ser dono do seu próprio corpo, abandonar suas vontades por uma vontade alheia, viver em prol de outrem e não mais de si mesmo, abdicar de toda privacidade e liberdade que tanto lutamos para conquistar, assinar uma sentença de responsabilidade triplicada, mergulhar num universo de horários à serem cumpridos e rotina à ser moldada para duas vidas distintas, entre outras coisas que me são completamente surreais, era uma boa ideia. Sim... Ele propunha o casamento. Aquela instituição sinistra, à qual a humanidade parece ser tendida à inclinar-se.


        Em síntese, ele era singular. Conseguia fazer-me sentir segurança, até nos momentos em que estava apavorada, mesmo distante. Conseguia fazer-me hesitar entre minhas certezas, e estava sempre a destruir os planos que eu um dia fizera, apenas porque em sua concepção, a vida à dois é melhor. Conseguia me deixar feliz com coisas escritas, ligações e presentes na caixa postal. Ele era aquele que surgiu, como quem vem ao mundo para uma missão específica, determinado à quebrar minhas razões, frustar minhas certezas, e desfazer meus planos! Mas, calma... Ele quebrava as razões, apenas para colocar um pouco de emoção entre elas. Ele frustrava minhas certezas, apenas porque gradativamente me provava que era possível a felicidade e vida em outros contextos, e não unicamente o meu. Ele desfazia meus planos, para construir novos, com mais audácia e bem mais complicação, mas com mais vida, calor e sentimento.
        Ele bagunçava minha vida, e movimentava minha base de ideais, me levava para mais perto de Deus, e me fazia conhecer outros lugares, para fora daquele muro racional que criei ao meu redor. Ele era assim... Simplesmente ele... Um 'ele' na multidão, que se diferenciava pela influência que exercia sobre minha vida.



"Por hoje permanece o que a razão permite palpar...
O amanhã guarda a possibilidade de manter permanente o que o coração consegue sentir."


Susan Oliveira

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O evento

          Vinte horas e trinta minutos... A decoração de tirar o fôlego já pronta, reluzia aos olhos, até do menos inspirado convidado. Tudo era exuberante, feito com uma perfeição e delicadeza extraordinárias. O corredor, por onde passaram todas as testemunhas e familiares, estava coberto por uma tapeçaria fina, que parecia ter sido bordada à mão, pelo mais nobre artesão. cada coluna, de estilo grego, com seus traços rústicos, era coberta por seda fina e arranjos florais escolhidos à dedo.
          Os convidados, bem alinhados, todos à caráter, trajados de gala, após verem todas as entradas formais e informais, precisamente ensaiadas e preparadas, aguardavam o momento que é, em ocasião como esta, o mais esperado, ouso dizer.
          A música mansa que tocava lá dentro fazia os olhos daquela platéia observadora, brilharem. Enquanto ali fora, a limousine preta estaciona. O recepcionista logo abra a porta, e estendendo a mão, segura com respeito e sutileza, a mão coberta por uma luva de cetim, da tão aguardada figura da noite. Ela coloca seus pés sobre o tapete, que se estendia até a rua, e enquanto era rodeada por mãos e olhos que arrumavam véu, cauda, buquê, era dominada por um sentimento incomum...
          Ela caminha até o holl, de onde pode ouvir a mudança da música, que passara à chamá-la ao interior, todos ali dentro se levantam, ela se posiciona de frente ao corredor, aguardando que as portas, grandes e robustas se abram diante de si, instante em que os pensamentos mais variados começam a consumir sua mente.
          Portas abertas, ela se vê diante do extenso corredor... Aos lados, pessoas com olhares meigos e emocionados -ela se encontrava portando uma beleza estarrecedora- , e à frente, distante, na outra extremidade do corredor, estava quem à esperava, apaixonado, nervoso, emocionado, quase eufórico, mas contido, com um belo sorriso e uma postura exemplar.


          Ela permanece parada ali, pelo que pareceram cinco minutos aos olhos de quem a observava, mas na verdade fora menos de um, lutando contra as pernas, que pareciam recusar-se a caminhar... Vencendo-as, inicia sua caminhada até o altar... 
          Seus olhos permaneciam fixos no final do corredor, em seus lábios brotavam sorrisos que se perdiam pelos pensamentos diversos que pairavam em sua mente, de modo que não conseguia manter-se sorrindo por mais de poucos segundos. Seus passos eram doces, como sempre foram, e seu andar demonstrava calma, contradizendo seu interior em caus, atormentado pelos pensamentos. Ela chega.
          Os momentos que se seguiram não foram por ela captados, a cerimônia seguia, mas ela se encontrava tão distante, como se seu corpo habitasse aquela dimensão, mas sua mente estivesse em outra, que não presenciou nem mesmo a entrada das alianças pelas bailarinas que com graciosidade faziam o papel da dama de honra, até que o momento esperado por todos se apresenta, trazendo-a de volta à si. Era a troca das alianças, o momento do sim, a tão esperada ação, que leva dois corpos ao caminho de serem apenas um. Ela olha para ele, que com a aliança na mão, diz as palavras encantadoras que havia ensaiado com antecedência, e fazia seus votos de fidelidade e amor eternos... Então vem a pergunta, e logo em seguida a resposta: Sim!


          Era a vez dela... Ela segura a aliança, não havia música neste momento, talvez por distração do maestro, ou uma falha do solista, o silêncio reinava. Seu olhar estava fixo no dele, e em seguida caminhando por toda a platéia que sentada observava a cena... Vem a pergunta... Ela olha para a aliança que segurava em sua mão, olha para ele, e olha para o lugar, desde o altar, até a porta... Silêncio....
          Em um instante de hesito dela, o silêncio é quebrado pelo som do ouro da aliança, antes em suas mãos, caindo no mármore do altar, e imediatamente depois, o som do tecido do belo vestido que a vestia, a se movimentar com rapidez. Todos parados, estáticos. Apenas o que se movia eram os olhos de cada um ali presente, na direção dela, e ela, que corria pelo corredor em direção à porta, segurando seu longo vestido. Ninguém ali presente conseguia mover um só membro, a cena era pasmante... Pelo corredor voltava correndo, com um olhar assustado, e um respirar ofegante, quem deveria voltar acompanhada e sorrindo.


          No meio do extenso corredor ela ouve seu nome, um grito que ecoou pelo templo, então firma seus passos, e corre ainda mais, alcançando a porta, o holl, e rapidamente a rua. O mesmo carro que a trouxera, agora a recebia, fechava sua porta, e a levava de volta... À essa altura todos já estavam se movimentando em direção ao holl, na expectativa de ver a figura ilustre da cerimônia, mas só puderam ver a limousine, que já estava no final da rua, à dobrar a esquina que dava para a ponte.


          O evento que se segue à este não será por mim relatado, deixo até aqui escrito, e que cada mente se atenha a imaginar o final que lhe for cabível...


Susan Oliveira