Era
uma noite quente, como a devastadora maioria das noites e dias
daquele peculiar Estado. Como a hora já estava avançada, não
haviam pessoas em grande quantidade pelas ruas, apenas uma ou outra
criatura vivente deambulava por direções que pareciam aleatórias,
embora seus semblantes demonstravam que sabiam mesmo para onde
estavam indo.
A
dona dos olhos castanhos caminhava de volta para a república, que
não carinhosamente apelidou de ‘lar, salgado lar’. Com passos
suaves e lentos, que pareciam calculados, planejados, como se a cada
vez que a planta dos pés se firmasse no chão, parte de suas
certezas se desfizessem, e então se tornasse necessário uma breve
pausa até que pudesse prosseguir, ela avançava... Motivo desse
caminhar esdrúxulo é porque ela vinha de uma breve reunião, para a
qual fora convocada. Se tratara de um particular assunto que por si
só daria uma história, digna de ser contada em livros, mas que por
hora ficará guardada.
Uma
virada de pescoço, uma passada de braço, um movimento firme com o
segundo dedo, e por último, um empurrão sutil, porém preciso e
firme… Pronto. Ali estava ela, no lado de dentro do portão cinza,
com grades igualmente pintadas, da garagem que antepunha a escada (de
espelho enorme, que levaria à loucura qualquer engenheiro civil ou
arquiteto que pudesse ver), que dava acesso à república.
Ela
caminha em direção ao primeiro lance da escada, e antes que pudesse
se utilizar dos músculos flexores e extensores de seus membros
inferiores, para alcançar o primeiro degrau, ouve a voz que tomaria
suas próximas horas, de uma forma bastante inesperada. “- Aháa!
Eu estava plantada aqui só te esperando!”, foram as palavras
proferidas com um tom de voz que poria medo em qualquer humano que se
encontrasse em seu perfeito juízo.
“-
Entra aqui!”, foi a sentença que se seguiu… Ela se vira
rapidamente, e com um meio sorriso nos lábios, pede licença e se
adentra à lavanderia de sua senhoria, que com um semblante fúnebre,
fixamente a olhava… Encostada na segunda cuba do tanque de mármore,
que ficava mais distante da janela, junto à máquina de lavar,
estava a distinta figura de cabelos brancos, com tinta louro dourado
já há quase dois centímetros da raiz.
Em
sua frente, ligeiramente para o lado, estava a dona dos olhos
castanhos, com a perna direita encostada em uma mesa antiga de
madeira compensada, daquelas que é possível dobrar ao meio, apenas
afastando as metades… Sua linguagem corporal quase gritava
entregando seu desconforto e vontade de sair dali…
“-
Eu quero que você suba agora, junte suas coisas, e as coisas da
outra (era a maneira que a senhoria tinha de se referir à inquilina
que não se fazia presente no momento da referência) e vá para a
rua. Quero vocês duas fora daqui, agora.”, foi a terceira fala da
ilustre figura de semblante sombrio. Com um olhar calmo, e agora não
mais lateralizada, a dona dos olhos castanhos, gentilmente olhava
para a senhoria, esperando que alguma explicação viesse em seguida,
justificando tal ordem. Nada… Houve por alguns segundos um silêncio
atormentador.
Não
posso descrever o que se passava na mente borbulhante daquela figura
ímpar, que já se encontrava imersa na terceira idade há tempo
suficiente para ser íntima de tal contexto. Mas por traz dos olhos
castanhos não passava nada além da expectativa intrigante de se
tornar conhecedora de mais um episódio incomum daquela residência.
Isso, e uma dose generosa de tranquilidade misturada com uma pitada
de perplexidade e muitos gramas de comicidade, já que abordagens
hostis e pequenos lapsos de conduta eram consideravelmente comuns
sobre o terreno daquele imóvel, sendo inevitável, diversas vezes, a
necessidade de se prender o riso por trás dos dentes, como quem
segura um filhote saltitante para que não cause problemas.
“-
Certo… Pode me explicar o motivo, por favor?”, pergunta a dona
dos olhos castanhos, com um tom de voz gentil e calmo, como sempre
fora ao dirigir a palavra à sua senhoria. Quebrado o silêncio com
tal indagação, não houve outro período insonoro até o desfecho
deste episódio. Os minutos seguintes foram tomados por argumentos e
acusações ditos enfaticamente, em alto e bom som, pela figura
sombria. Dedo indicador apontado com firmeza, e cordas vocais afiadas
foram os instrumentos usados pela distinta senhora, enquanto
despejava como êmese, as palavras impensadas sobre os olhos
castanhos, que permaneciam serenos, a olhar atentamente para a figura
a gritar.
Não
cabe aqui expor, caro leitor, o que naquela hora fora dito, à plenos
pulmões, mas garanto-lhe que se tratou de algo consideravelmente
sério, o que já deve ter ficado claro desde a terceira fala daquela
que residia na terceira idade. Entretanto alegro-me em dizer que o
álibi, definido pelo dicionário como ‘defesa que o réu apresenta
quando pretende provar que não poderia ter cometido o crime por, por
exemplo, encontrar-se em um local diverso daquele em que o crime de
que o acusam foi praticado’, ou simplesmente como ‘justificação
ou escusa aceitável’, mas que eu prefiro chamar de ‘produtor de
alívio indescritível’, foi usado naquela noite.
A
dona dos olhos castanhos se encontrava no momento do episódio que
gerara o infortúnio, em uma conclave com um líder renomado e
reconhecido por todos, inclusive pela senhora de raízes capilares
brancas, que naquela noite se fizera acusadora, e “a outra” como
gostava de chamar a senhoria, se encontrava fora da Ilha, com
testemunhas suficientes para haver o ‘alívio indescritível’.
Tal condição, que ouso crer ter sido provida de forma cuidadosa por
Aquele que cuida de tudo, trouxe absolvição às rés, de modo que a
expulsão sem precedentes, foi cancelada.
O
evento durou pouco mais de 10 horas, e depois se findou… Findou-se
como finda tudo… Tal episódio tragicômico estava até hoje
somente nas memórias dos protagonistas, pois era apenas mais um
acontecimento… E agora, está também descrito em palavras,
disponível para quem se puser a ler. Nada mudou depois disso…
Embora talvez soe como algo bizarro (e de fato o é), para a dona dos
olhos castanhos e sua colega de quarto, de cabelos dourados,
tratava-se apenas de mais um episódio vivido, dentre incontáveis
outros, mais cômicos e/ou mais trágicos, que já se discorreram nos
últimos 4 anos de república.
Era
apenas mais um capítulo, do mais interessante e empolgante livro que
há: o livro da realidade, das histórias não contadas que geram
experiências pessoais únicas, e amadurecimento sem preço. Era
apenas, mais um dia...