quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Apenas mais um capítulo

       Era uma noite quente, como a devastadora maioria das noites e dias daquele peculiar Estado. Como a hora já estava avançada, não haviam pessoas em grande quantidade pelas ruas, apenas uma ou outra criatura vivente deambulava por direções que pareciam aleatórias, embora seus semblantes demonstravam que sabiam mesmo para onde estavam indo.
       A dona dos olhos castanhos caminhava de volta para a república, que não carinhosamente apelidou de ‘lar, salgado lar’. Com passos suaves e lentos, que pareciam calculados, planejados, como se a cada vez que a planta dos pés se firmasse no chão, parte de suas certezas se desfizessem, e então se tornasse necessário uma breve pausa até que pudesse prosseguir, ela avançava... Motivo desse caminhar esdrúxulo é porque ela vinha de uma breve reunião, para a qual fora convocada. Se tratara de um particular assunto que por si só daria uma história, digna de ser contada em livros, mas que por hora ficará guardada.
       Uma virada de pescoço, uma passada de braço, um movimento firme com o segundo dedo, e por último, um empurrão sutil, porém preciso e firme… Pronto. Ali estava ela, no lado de dentro do portão cinza, com grades igualmente pintadas, da garagem que antepunha a escada (de espelho enorme, que levaria à loucura qualquer engenheiro civil ou arquiteto que pudesse ver), que dava acesso à república.
       Ela caminha em direção ao primeiro lance da escada, e antes que pudesse se utilizar dos músculos flexores e extensores de seus membros inferiores, para alcançar o primeiro degrau, ouve a voz que tomaria suas próximas horas, de uma forma bastante inesperada. “- Aháa! Eu estava plantada aqui só te esperando!”, foram as palavras proferidas com um tom de voz que poria medo em qualquer humano que se encontrasse em seu perfeito juízo.
       “- Entra aqui!”, foi a sentença que se seguiu… Ela se vira rapidamente, e com um meio sorriso nos lábios, pede licença e se adentra à lavanderia de sua senhoria, que com um semblante fúnebre, fixamente a olhava… Encostada na segunda cuba do tanque de mármore, que ficava mais distante da janela, junto à máquina de lavar, estava a distinta figura de cabelos brancos, com tinta louro dourado já há quase dois centímetros da raiz.
       Em sua frente, ligeiramente para o lado, estava a dona dos olhos castanhos, com a perna direita encostada em uma mesa antiga de madeira compensada, daquelas que é possível dobrar ao meio, apenas afastando as metades… Sua linguagem corporal quase gritava entregando seu desconforto e vontade de sair dali…
       “- Eu quero que você suba agora, junte suas coisas, e as coisas da outra (era a maneira que a senhoria tinha de se referir à inquilina que não se fazia presente no momento da referência) e vá para a rua. Quero vocês duas fora daqui, agora.”, foi a terceira fala da ilustre figura de semblante sombrio. Com um olhar calmo, e agora não mais lateralizada, a dona dos olhos castanhos, gentilmente olhava para a senhoria, esperando que alguma explicação viesse em seguida, justificando tal ordem. Nada… Houve por alguns segundos um silêncio atormentador.


       Não posso descrever o que se passava na mente borbulhante daquela figura ímpar, que já se encontrava imersa na terceira idade há tempo suficiente para ser íntima de tal contexto. Mas por traz dos olhos castanhos não passava nada além da expectativa intrigante de se tornar conhecedora de mais um episódio incomum daquela residência. Isso, e uma dose generosa de tranquilidade misturada com uma pitada de perplexidade e muitos gramas de comicidade, já que abordagens hostis e pequenos lapsos de conduta eram consideravelmente comuns sobre o terreno daquele imóvel, sendo inevitável, diversas vezes, a necessidade de se prender o riso por trás dos dentes, como quem segura um filhote saltitante para que não cause problemas.
       “- Certo… Pode me explicar o motivo, por favor?”, pergunta a dona dos olhos castanhos, com um tom de voz gentil e calmo, como sempre fora ao dirigir a palavra à sua senhoria. Quebrado o silêncio com tal indagação, não houve outro período insonoro até o desfecho deste episódio. Os minutos seguintes foram tomados por argumentos e acusações ditos enfaticamente, em alto e bom som, pela figura sombria. Dedo indicador apontado com firmeza, e cordas vocais afiadas foram os instrumentos usados pela distinta senhora, enquanto despejava como êmese, as palavras impensadas sobre os olhos castanhos, que permaneciam serenos, a olhar atentamente para a figura a gritar.
       Não cabe aqui expor, caro leitor, o que naquela hora fora dito, à plenos pulmões, mas garanto-lhe que se tratou de algo consideravelmente sério, o que já deve ter ficado claro desde a terceira fala daquela que residia na terceira idade. Entretanto alegro-me em dizer que o álibi, definido pelo dicionário como ‘defesa que o réu apresenta quando pretende provar que não poderia ter cometido o crime por, por exemplo, encontrar-se em um local diverso daquele em que o crime de que o acusam foi praticado’, ou simplesmente como ‘justificação ou escusa aceitável’, mas que eu prefiro chamar de ‘produtor de alívio indescritível’, foi usado naquela noite.
       A dona dos olhos castanhos se encontrava no momento do episódio que gerara o infortúnio, em uma conclave com um líder renomado e reconhecido por todos, inclusive pela senhora de raízes capilares brancas, que naquela noite se fizera acusadora, e “a outra” como gostava de chamar a senhoria, se encontrava fora da Ilha, com testemunhas suficientes para haver o ‘alívio indescritível’. Tal condição, que ouso crer ter sido provida de forma cuidadosa por Aquele que cuida de tudo, trouxe absolvição às rés, de modo que a expulsão sem precedentes, foi cancelada.
       O evento durou pouco mais de 10 horas, e depois se findou… Findou-se como finda tudo… Tal episódio tragicômico estava até hoje somente nas memórias dos protagonistas, pois era apenas mais um acontecimento… E agora, está também descrito em palavras, disponível para quem se puser a ler. Nada mudou depois disso… Embora talvez soe como algo bizarro (e de fato o é), para a dona dos olhos castanhos e sua colega de quarto, de cabelos dourados, tratava-se apenas de mais um episódio vivido, dentre incontáveis outros, mais cômicos e/ou mais trágicos, que já se discorreram nos últimos 4 anos de república.

       Era apenas mais um capítulo, do mais interessante e empolgante livro que há: o livro da realidade, das histórias não contadas que geram experiências pessoais únicas, e amadurecimento sem preço. Era apenas, mais um dia...